segunda-feira, 25 de junho de 2007

E-mail de uma amiga sábia

Mulher,
Andei lendo teu blog, e não consegui resistir. Aponte um ser humano - unzinho só -, de Jesus Cristo a George Bush, freira ou puta, gênio ou bucéfalo, que não seja tão simplesmente o teu patchwork, os tais retalhinhos de lembranças. Ando meio Pollyanna, mas a questão é que ando me convencendo de que só por isso, só por sermos um receptáculo quase sagrado de memórias que vamos acumulando e transmitindo pela vida, pros nossos amigos queridos, pros nossos filhos, qual antenas bêbadas, é que essa lida vale alguma pena - no nosso caso específico, ainda tem o raio do leitor.
Não tivesse eu descido ao inferno e, depois de anos, ter decidido voltar à superfície dos mortais (a escalada ainda não acabou, como bem sabes), eu jamais poderia ter a convicção que hoje tenho ao te dizer que isso vai passar. Não tivesse trazido em si nenhum outro aprendizado sobre minha própria alma, a jornada ao extremo Sul em companhia de um traste já teria valido só por hoje eu poder dizer à amiga querida que agora chora, sem nenhuma dúvida, plagiando lá o amigo do Rei Davi, "isso também vai passar".
Vai passar como passa cada segundo. E digo isso com a constatação de que aquilo que me ia no coração ao começar a te escrever esse e-mail já não vai mais. Já estou no terceiro parágrafo e me dou conta nesse exato momento de que o relato que fiz no segundo parágrafo me remeteu a um monte de lembranças que me atropelam agora. Lembranças de uma dor em estado puro; de uma dor no corpo e na alma; de uma dor que não tem nome, nem forma; de uma dor que levou meses pra parar de doer; de dor, só dor, que, adivinhe?, passou. Não passou ainda o que processei a partir disso, é verdade.
Vai passar como passaram aqueles momentos absurdos que vivemos quando ainda não sabemos que coisa é essa de ser mulher; quando não sabemos por que diabos nosso corpo sangra, todo maldito mês, sem que a gente tenha feito nenhuma travessura; quando não sabemos direito o que fazer com aquela língua que nos invade a boca no primeiro beijo; quando não sabemos direito como é que é essa história do sujeito enfiar um pedaço do corpo dele no corpo da gente. Vai passar como passou a dor de quando sofremos de amor pela primeira vez e temos a certeza absoluta de que o mundo vai acabar.
Dá licença, agora, amiga, mas não temos mais o direito de achar que não sabemos com o que estamos lidando. Sabemos exatamente que aquele queijinho bacana, amarelinho, furadinho, igual a de desenho animado, estava num raio de uma ratoeira. O que temos que precisamos fazer agora é buscar na alma por que diabos sempre ignoramos a ratoeira só pelo prazer de pegar o tal queijinho ou, se Deus existir, encontrar algum queijinho fora do raio da retoeira.
O problema é que isso também vai passar, de novo plagiando o amigo do rei, como passaram momentos deliciosos, daqueles de nos trazer lágrimas aos olhos quando lembramos ou daqueles de matar os amigos de rir quando contamos.
Agora, já no sexto parágrafo, me lembro de uma noite, eu, sozinha, na Ilha de Capri, num hotel encarapitado na encosta à beira da Baía de Nápoles, bebendo vinho, Sinatra no ouvido. Não amava ninguém, não tinha saudade de ninguém. À minha frente, o mar, enorme, e uma tempestade caindo sobre Nápoles, com raios despencando na cidade. Isso, à direita. Porque à esquerda o sol se punha, displicente, em céu de brigadeiro, rosa, rosa, como se não fosse com ele. Era uma tempestade localizada, como costumam ser as tempestades. O melhor de tudo é que isso me veio à cabeça agora, imediatamente depois de eu ter passeado pelo primeiro amor errado e pelo meu passado no inferno. Explicação, não tenho. Só sei que foi assim, como diria o Chicó do bom Suassuna. Seqüelas? Acho que não. Prefiro chamá-las de... é..., bem..., não sei bem como chamá-las.
O que ainda não passou, amiga, é o que virá no segundo seguinte. E, pra piorar, no momento exato em que eu escrevia "momento seguinte", ele já não existia mais, já tinha se transformado imediatamente em momento passado, em memória, em parte do meu próprio patchwork, que vou exibindo aí pelos botequins, pela minha narrativa, pela força da grana que ergue e destrói coisas belas... ih, me empolguei. Enfim, babe, é simples e óbvio assim.
Não vou encerrar com um discursozinho patético sobre a esperança no que virá - "virá, que eu vi", diria o baiano metido a Einstein (ih, é a segunda referência a Caê, ando péééééssima). Mas, na boa, confessa com tua boca que a nossa absoluta falta de informação sobre o próximo segundo, o que está imediatamente à nossa frente, o que ainda não veio e o que ainda não virou memória, não constitui o que de mais sagrado essa lida nos dá?
Cuide-se. Tô aqui a qualquer hora.
Beijo grande.

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