segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ana Torrent


Ana Torrent é Cria Cuervos e O Espírito da Colméia. Ana é menina. Já foi mulher de Henrique VIII, mas antes teve pena do monstro do Frankenstein e acreditava ter o poder da vida e da morte das pessoas. Quando crianças sempre acreditamos nisso, que somos invencíveis, impossíveis, invisíveis.
Eu voava quando tinha cinco anos. Na minha certeza de ser mais leve que o ar, me atirei muito de janelas, uma sorte ter morado em casa. Também me lancei muito da muretinha da praia da Freguesia, na Ilha do Governador. Não me lembro de cair de machucar nem de comer areia, não, então certamente voei muito pelo espaço aberto do meu grande mundo, onde viajar para mim era cruzar a ponte do Galeão para visitar minhas tias no Flamengo. Hoje, coragem não me falta de pular de qualquer lugar e ver o mundo do alto, fazer piruetas de braços abertos, mas sabe como é, estou mais pesada, sei lá. Vai que a imaginação se esgarce...

Outro dos meus poderes infantis era fazer as luzes dos túneis se acenderem. Achava incrível elas esperarem exatamente o momento em que eu passaria para iluminar a rota dos motoristas. E os outros que passaram em carros antes de mim? E os que passariam depois? Problema deles, que não me tinham no carro. Eu era importante. Uau. Então, um dia, descobri o decepcionante segredo das luzes: elas estavam sempre viradas na direção contrária à do sentido em que o carro ia. Crescer dói porque desencanta.

Mas eu ainda guardo alguns pequenos truques. Posso ser invisível. Juro. Ensinei o segredo a um único amigo, o Garambone. Uma vez, conversávamos no Belmonte e uma pesssoa que não queríamos que se sentasse conosco chegou. Ihhhh, resmungou meu amigo. Calma, basta dizer: invisível! Pois a momentaneamente indesejada criatura circulou pela nossa mesa, foi para dentro, para fora, passou de novo por nós e desistiu de nos procurar. Eu e Garamba nos olhamos surpresos e sorridentes. Algumas pessoas têm a capacidade de nos fazer poderosas novamente, seja na força, seja na imaginação. Essas são imprescindíveis na nossa vida.

A leitura dos pensamentos dos outros e a visão do futuro também são meu forte. Só que trazem, invariavelmente, tristeza. Por caridade a mim mesma, ou burrice, tento manter esse poder inativo, mas não adianta. Não podemos renegar nossos dons, são parte do que somos, como a carne, os ossos, o sangue.