terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Reverência ao destino

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.
Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.
Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.
Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.
Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.
Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.
Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.
Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...
Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.
Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.
Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.
Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.
Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.
Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.
Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.
Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.
Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.
Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.
Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.

(Drummond)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Alice não mora mais aqui

Ouço miados de gato no telhado
Subo devagar, cautela nas pernas
Firmeza sobre as telhas incertas.

Não há nada lá.
Nunca nada há.

Gatinho de Cheshire, deixa teu riso
Meu mundo é um toco oco
De chás e delírios que tremem.

Por que fazer chorar?
Chorar clareia o olhar?

Cansam-me todos os conflitos
Abandono-me à tua espera
Gato rosa da minha infância.

Vem, anjo, pra cá.
Alice deve tardar.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Amar como ama o black (beans)

Foi estranho acordar lembrando de uma figuraça da década de 70. Gerson King Combo. Alguém lembra? Negão, óculos escuros, elegante que só. Ele me veio à cabeça com o incômodo da saudade. Adorava vê-lo dançar. Que James Brown que nada. Na saída da minha infância, eu vibrava mesmo era com Gerson King Combo.
O dia começou com as imagens vagas do negão sumido e se embrenhou total para a nostalgia. Sem empregada, resolvi cozinhar umas naturebices. Notei que havia uns grãos bem escurinhos e estranhos no feijão azuki. Fiquei lá catando os que iam para a panela. Minha avó e minha mãe "escolhiam" o arroz e o feijão. Nunca mais vi ninguém fazendo isso. As pessoas vão abandonando as tradições por pressa, solidão ou percepção desgostosa da inutilidade dos atos. "Escolher" feijão durava muitos minutos na minha casa. Os grãos eram remexidos para lá e para cá, um movimento que só acabava quando não havia mais o que falar sobre a vida dos outros na cozinha. Era uma terapia em grupo, a casa inteira reunida, olhos fixos no movimento e língua afiada. Às vezes, havia silêncio, mas os olhos permaneciam fixos no trabalho alheio. Quando isso acontecia, era em respeito às lágrimas da cozinheira que por algum tormento entristecera. A solidariedade se mantinha na presença muda. Agora só me falam de individualidade, sem olhar solidário, sem apoio amigo. Meditação em vez de catarse. Isso é o chique. O respeito é manter a distância, falar com o motorista somente o indispensável. Ai, que triste esse mundo que estamos construindo de bocas em que não entram mosquitos para termos histórias a contar.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Olha só o achado, Rozane, a vingadora

A mulher seqüelada

Seqüelada. Haverá prazer maior do que uma palavra nova numa mulher das antigas? As letrinhas morrem de rir, a moça infelizmente não pára de chorar e de perguntar. O que aconteceu? Seqüelas doem. Por muito. Ligue seu aparelho estereofônico e escute as duas. Já teve a mulata que não está no mapa, o remédio que o doutor me receitou e tantas outras. Todas lindas. As certinhas do Lalau, as garotas do Alceu, as dez mais, as chacretes, as existencialistas com toda razão, as boazudas, as frenéticas, as sufraguetes, as marias chuteiras, as socialites, os brotos, as gatinhas, as cachorras e as eternas cinéfilas cubistas do Estação. Agora é a vez da mulher seqüelada, a mais triste. O trema é antigo, o sentido novo. O problema, coitadas, o mesmo de sempre. O medo, a quase certeza, de que neste momento existe outra tocando a pele dele e o enleio de ontem, o conluio da véspera, foi o último. O medo, a absoluta certeza de constatar que o amor é feito de mãos e dentes, o resto se desfaz na vaguitude dos espíritos, no desespero das saudades, na obsessão eterna, amém. A seqüelada não está no dicionário. Houaiss. Aurélio. Eles não sabiam ainda. Perderam este bonde semântico. Homens tradicionais, todos bem casados, não sabiam nada do pegapracapá amoroso. Nossos dicionaristas não tiveram o prazer. Pularam o verbete. Maysa era uma seqüelada quando cantava meu mundo caiu e me fez ficar assim. Estropiada. Desparagonada. Anarquizada. De quatro. Ela sofria. Dois imensos olhos não pacíficos chorando abandonos semestrais. Nora Ney, então, nem se fala. Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de bem me quer. Hoje há cantoras ecléticas, seqüelada nenhuma se admite. Seqüelada, ouço-as maldizer, ficava a vovozinha. Não que seja praga-e-budapeste insuperáveis. Não lhes ria. Acontece um dia e a todas em sua hora de desespero o rótulo lhes caberá naquele esgar de sempre. Ali, na esquina do buço dourado com a covinha da bochecha. Todos saberão ou, os mais míopes, ouvirão que você não balbucia outra coisa. Ele. Sumiu. Volta? Há a mulher da vida, a Maria ninguém, a canhão, a hippie, a vai com as outras, a vizinha faladeira. A seqüelada já estava nas cavernas egípcias, nenhuma novidade no seu despudor sofrido. Os gregos, os portugueses, os fenícios, todos os homens em algum momento iam embora e deixavam a pobre coitada a perguntar para os amigos. Por quê? Disse que me queria. Rimou as mais doidas poesias. O amor é sentimento ou matéria? Dar ou receber? Por que o espírito é tão possessivo? Noventa por cento do tempo dela são dedicados a tentar entender o na maioria das vezes verbalmente inexplicável. Ele não ligou. Disse que vinha. A mulher seqüelada é isso que você já percebeu. Aquela que ficou traumatizada pela tristeza que Vinicius anunciava na canção. Se a vida é a arte do encontro por que tanto desencontro nessa vida. Eu encontrei uma seqüelada dias atrás e ela me foi sincera no pedido. Que eu a ajudasse a colocá-la no sono daquele certo homem e ele nunca mais dormisse em paz. Nunca mais acertasse o tom de uma música, nunca mais concordasse o verbo com o sujeito, nunca mais acertasse o foco e a luz de uma maldita foto. Que a seqüela atravessasse a rua, sem sinalizar seu novo rumo, e de surpresa, como o carcamano tinha feito com ela, como uma Pajero desgovernada, agora o atingisse — e eu amanhã publicasse no jornal a mais linda das notícias. Que os sinais vitais do indigitado, o seu orgulho de macho, a soberba dos que abandonam, já não estavam mais preservados. Havia se ido desta para uma pior e que a assombração de seu grito de orgasmo pairasse toda noite sobre aquela última a quem ele havia tocado a pele. Só assim ela, a seqüelada que me pede ajuda, se libertaria de reinventar todos os dias os olhos de desejos que ele, ainda anteontem pela manhã, debruçava sobre seu corpo. Só assim ela se livraria do gosto da hóstia consagrada que em seguida ele colocou, recitando o mantra lírico-safado dos amantes, em sua boca arfante. Ela queria mais, mais, mais, e agora sabia tudo em vão. A seqüelada é aquela que se espanta com a voz do corvo na orelha. Nunca mais. Nunca mais. Certas noites ela pede para que a igreja evangélica logo ao lado amplifique dez vezes os gritos de aleluia e lhe apague o corvo das orelhas. Mas o corvo também tem seu sistema de som e TV. Nunca mais é nunca mais. Fala mais alto. Maria Adelaide do Amaral, da minissérie “JK” me perguntou outro dia. Como se dizia lésbica nos anos 50, já que lésbica propriamente não se dizia nos anos dourados da repressão sexual. Cassandra Rios parece que carregava o estigma, nenhuma mais. Sexo não era essa alaúza de agora. Eu arrisquei paraíba e parece que alguém vai ser chamada assim na TV. Não vem ao caso. Seqüelada não tem nada a ver com isso. Pelo contrário. Ela gosta é dos homens, mas geralmente dos homens errados. Tem a ver com a paraíba, mulher macho, sim senhor, apenas porque os rótulos são cruéis e ajudam a entender em quatro sílabas as 500 páginas da odisséia de Ulisses. Entre os adolescentes, por exemplo, há uma seqüelada diferente. Para eles a seqüelada é apenas a mulher lerda, meio viajandona , que não entende bem as coisas. Sofre das idéias, os buracos da maconha já apagando uns arquivos da memória. Na faixa acima dos 30 anos as seqüelas são outras. Atacam o coração. A seqüela identifica a vítima de um cretino qualquer que prometeu mundos, fundos e uma viagem para os cafundós mais profundos onde ninguém interromperia a pressa de suas mãos e dentes. Foi o que ela entendeu e agora ei-la aqui. De quatro, feito a outra. Na véspera do Natal, na noite de aniversário, minutos depois de ter sido presenteado com uma caixa de DVDs dos Beatles, o cara não explicou muito bem o que estava acontecendo para aquele súbito tremor nos artelhos. Arriscou umas palavras vagas sobre a complexidade de se estabelecer um tempo comum entre eles. Parou no meio de uma frase sobre a falta de sintonia entre a ambição física e a correspondência dos sentidos. Olhou turvo para a mosca varejeira que passeava sobre a pia. Bateu a porta como se fosse ali no quiosque comprar flores. E foi. Para sempre. Nem se dignou ao aviso. Era a extrema-unção dos católicos, a saideira do Braca, o baile da cremação das tristezas dos carnavalescos, o último acorde para os melômanos, o trilar do apito para os boleiros. Bateu a porta e inaugurou no peito de mais uma muher a seqüela terçã que a tudo embaça e não deixa crer que amanhã, e nem mesmo depois do carnaval de satisfaction dos Rolling Stones, nunca mais será outro dia. Maldito o amor lhe seja.

(Joaquim Ferreira dos Santos)