terça-feira, 6 de outubro de 2009

Confissão. Ou As tentações de Santo Antão

Não sei se alguém que lê este blog conhece os confessionários do Convento de Santo Antônio, no Rio, pelo menos nestes tempos de reforma. Em uma varandinha que dá para o pátio geralmente fechado à visitação dos fiéis estão duas mesinhas, parecendo de repartição pública, cada uma ocupada por um religioso, com uma cadeirinha ao lado para o "pecador" se sentar e preencher verbalmente uma anamnese de falhas espirituais e pouca fé. Escolhi a segunda mesinha, pela distância do salão onde estava sendo celebrada a missa do frei Floriano e também pelos bondosos olhos azuis do franciscano em seu tradicional hábito marrom. Dei bom-dia.
- ... - olhavam-me os olhos azuis.
O que eu deveria falar? O silêncio era constrangedor.
- Bom, não sei por onde começar. Na verdade, estou buscando paz para meu coração e o fim de pensamentos ruins - desabafei, emocionada, com os olhos cheios de lágrimas.
- Há quanto tempo a senhora não se confessa? - perguntou ele.
Tive medo de responder. Só me lembrava da confissão da Primeira Comunhão, quando balbuciei, roxa de vergonha, que brigava com meu irmão, discutia com meus pais e - pecado dos pecados - havia, digamos, tomado emprestado sem pedido nem prazo de devolução uma lindíssima capinha de chuva transparente da Susi de uma amiga.
- Acho que tinha 8 anos. Foi na Primeira Comunhão.
- E quantos anos a senhora tem agora?
- 45.
- E a senhora acha que é católica?
- Claro que sou católica.
- Mas a Igreja manda confessar uma vez por ano. Por que a senhora não fez isso? São 40 anos...
Comecei a me irritar. Ele estava deliberadamente aumentando minha idade.
- Menos de 40, por favor. Mas não acredito em confissão. Acredito em conversas com um Deus piedoso, e isso tenho sempre.
- Existem regras na igreja. A senhora não vai andar nua na rua porque acha isso certo.
Ai, meus sais...
- São coisas diferentes. A justiça dos homens às vezes absolve o que não é absolvido pela divina e vice-versa. Ou não? Acho que há entre os católicos várias correntes que afrouxam ou apertam mais as interpretações das leis de Deus e do Vaticano.
- Isso a senhora está falando sem nenhum embasamento.
Meus sentimentos agora passavam longe de qualquer temperança. Estava em vias de pegar pesado e mandar a tal da paz que fui buscar às favas. Rapidamente, pensei: deve ser uma provação de Deus, tal qual foi feito com Jó. Diminuí a carga com uma enorme expiração.
- Olha, não estou aqui para discutir religião com o senhor, vim em busca de ajuda espiritual.
- A senhora é casada?
Sinceramente, não entendi a razão da pergunta. Enfim...
- Não, separada.
- Casou-se na igreja?
(Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz - repetia como um mantra)
- Não casei na igreja, não.
- Faz muito tempo que se separou?
- Hã????
- Faz muito tempo que se separou?
- Uns sete anos.
- E o que fez de lá para cá?
Como assim, o que fez? Será que ele queria ouvir sobre minha vida sexual? Era isso? O frade estava me provocando. Ou não. Provação de Jó. A resposta veio ríspida.
- Trabalhei como uma mula e criei dois filhos pequenos. Mas se o senhor quer saber se tenho pecados, não sei. Todos os dias, quando rezo o Pai-Nosso, peço perdão pelas minhas ofensas. E, se eu me lembro, porque posso ter tido amnésias providenciais, não matei nem roubei. O resto dos mandamentos da lei de Deus acho que cumpri também - prolonguei-me, esquecendo com certeza aquele tal de não cobiçar... Vale para mulher e homem?
- A gente peca sempre.
- Muito por omissão. Acho que meus maiores pecados foram por omissão, sim - agilizei, sem omitir no tom das palavras que naquele momento a ira tomava conta do meu espírito antes quase santo.
- Vai à igreja?
- Não estou aqui?
- Mas tem que ir aos domingos.
Ah, não. O frade ia me levar à loucura. Provação de Jó, provação de Jó, provação de Jó.
- Tem diferença? Venho quase todas as terças aqui e em alguns domingos vou a outra igreja. Mas rezo sempre para um Deus que todos vocês, padres, dizem que é um Deus de perdão.
- A senhora então, reze sete Pais-Nossos e sete Aves-Marias hoje e amanhã. Eu a absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito santo. Amém.
Respondi amém, enquanto pensava que a penitência fora até pequena para o tanto de pecado que ele imaginava que eu tinha em quase 40 anos sem confissão. Eu me dera bem no teste de Jó. Minha fé e meus princípios não haviam sido abalados. Mas, peraê, o que era aquele frade que passava rápido por mim, não o confessor, mas outro, também de hábito marrom, sandálias franciscanas e cabelos... pintados de acaju precisando de retocar a raiz????? Franciscanos não fazem votos de não vaidade? Nada de Livro de Jó. Eu passeava em uma uma tela de Hieronymus Bosch.

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