Não sei se alguém que lê este blog conhece os confessionários do Convento de Santo Antônio, no Rio, pelo menos nestes tempos de reforma. Em uma varandinha que dá para o pátio geralmente fechado à visitação dos fiéis estão duas mesinhas, parecendo de repartição pública, cada uma ocupada por um religioso, com uma cadeirinha ao lado para o "pecador" se sentar e preencher verbalmente uma anamnese de falhas espirituais e pouca fé. Escolhi a segunda mesinha, pela distância do salão onde estava sendo celebrada a missa do frei Floriano e também pelos bondosos olhos azuis do franciscano em seu tradicional hábito marrom. Dei bom-dia.
- ... - olhavam-me os olhos azuis.
O que eu deveria falar? O silêncio era constrangedor.
- Bom, não sei por onde começar. Na verdade, estou buscando paz para meu coração e o fim de pensamentos ruins - desabafei, emocionada, com os olhos cheios de lágrimas.
- Há quanto tempo a senhora não se confessa? - perguntou ele.
Tive medo de responder. Só me lembrava da confissão da Primeira Comunhão, quando balbuciei, roxa de vergonha, que brigava com meu irmão, discutia com meus pais e - pecado dos pecados - havia, digamos, tomado emprestado sem pedido nem prazo de devolução uma lindíssima capinha de chuva transparente da Susi de uma amiga.
- Acho que tinha 8 anos. Foi na Primeira Comunhão.
- E quantos anos a senhora tem agora?
- 45.
- E a senhora acha que é católica?
- Claro que sou católica.
- Mas a Igreja manda confessar uma vez por ano. Por que a senhora não fez isso? São 40 anos...
Comecei a me irritar. Ele estava deliberadamente aumentando minha idade.
- Menos de 40, por favor. Mas não acredito em confissão. Acredito em conversas com um Deus piedoso, e isso tenho sempre.
- Existem regras na igreja. A senhora não vai andar nua na rua porque acha isso certo.
Ai, meus sais...
- São coisas diferentes. A justiça dos homens às vezes absolve o que não é absolvido pela divina e vice-versa. Ou não? Acho que há entre os católicos várias correntes que afrouxam ou apertam mais as interpretações das leis de Deus e do Vaticano.
- Isso a senhora está falando sem nenhum embasamento.
Meus sentimentos agora passavam longe de qualquer temperança. Estava em vias de pegar pesado e mandar a tal da paz que fui buscar às favas. Rapidamente, pensei: deve ser uma provação de Deus, tal qual foi feito com Jó. Diminuí a carga com uma enorme expiração.
- Olha, não estou aqui para discutir religião com o senhor, vim em busca de ajuda espiritual.
- A senhora é casada?
Sinceramente, não entendi a razão da pergunta. Enfim...
- Não, separada.
- Casou-se na igreja?
(Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz - repetia como um mantra)
- Não casei na igreja, não.
- Faz muito tempo que se separou?
- Hã????
- Faz muito tempo que se separou?
- Uns sete anos.
- E o que fez de lá para cá?
Como assim, o que fez? Será que ele queria ouvir sobre minha vida sexual? Era isso? O frade estava me provocando. Ou não. Provação de Jó. A resposta veio ríspida.
- Trabalhei como uma mula e criei dois filhos pequenos. Mas se o senhor quer saber se tenho pecados, não sei. Todos os dias, quando rezo o Pai-Nosso, peço perdão pelas minhas ofensas. E, se eu me lembro, porque posso ter tido amnésias providenciais, não matei nem roubei. O resto dos mandamentos da lei de Deus acho que cumpri também - prolonguei-me, esquecendo com certeza aquele tal de não cobiçar... Vale para mulher e homem?
- A gente peca sempre.
- Muito por omissão. Acho que meus maiores pecados foram por omissão, sim - agilizei, sem omitir no tom das palavras que naquele momento a ira tomava conta do meu espírito antes quase santo.
- Vai à igreja?
- Não estou aqui?
- Mas tem que ir aos domingos.
Ah, não. O frade ia me levar à loucura. Provação de Jó, provação de Jó, provação de Jó.
- Tem diferença? Venho quase todas as terças aqui e em alguns domingos vou a outra igreja. Mas rezo sempre para um Deus que todos vocês, padres, dizem que é um Deus de perdão.
- A senhora então, reze sete Pais-Nossos e sete Aves-Marias hoje e amanhã. Eu a absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito santo. Amém.
Respondi amém, enquanto pensava que a penitência fora até pequena para o tanto de pecado que ele imaginava que eu tinha em quase 40 anos sem confissão. Eu me dera bem no teste de Jó. Minha fé e meus princípios não haviam sido abalados. Mas, peraê, o que era aquele frade que passava rápido por mim, não o confessor, mas outro, também de hábito marrom, sandálias franciscanas e cabelos... pintados de acaju precisando de retocar a raiz????? Franciscanos não fazem votos de não vaidade? Nada de Livro de Jó. Eu passeava em uma uma tela de Hieronymus Bosch.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário