domingo, 20 de abril de 2008

Cena do cotidiano

- Diz que não gosta de mim, assim fica mais fácil (ela chorava ao celular).
- ... (não sei o que a pessoa do outro lado da linha falou, mas imaginei algo como "não posso dizer")
- Por quê? A gente está se despedindo (soluços de dar pena).
- ... (também imaginação minha: "porque não é verdade"
- Mas se você gosta de mim, por que a separação? Tá doendo... (a bichinha se contorcia de rejeição)
- ... (mais uma vez: "não gosto de você do jeito que você gosta de mim").
- Como assim? E os 'eu te amo' que você me dizia? E os poemas? Tudo isso só para me comer? (o choro cessou com a raiva).
- ... ("coisas de momento")
- Ah, coisas de momento... (olhando fixamente o mar como uma pré-suicida e limpando as lágrimas). Tudo bem. Vai passar.
- ... ("você vai ficar bem")
- Vou. E você também, infelizmente.
A garota desligou e ficou segurando o celular. As lágrimas voltaram. Ela percebeu que eu tinha ouvido tudo. "Acabou", disse-me. "É, estou vendo", respondi, sem tentar disfarçar. "Ele era a minha vida" (entre soluços). "Ninguém é a vida de ninguém", ponderei. "Sem ele, nada faz sentido", desesperou-se. "Nada faz sentido nunca", consolei. "Como assim?", surpreendeu-se. "Enquanto ouvia sua conversa, pensei nas minhas separações. Foram muitas. Dois dos meus amores, eu afastei com viagens. Outro, com quem quis viver até morrer, me traiu. E olha que ele dizia que queria fazer um banco para sentarmos juntos e vermos nossa velhice passar, assim como o Jorge Amado construiu na casa dele de Rio Vermelho. Pra ele e a Zélia Gattai. Esse golpe foi duro, me tirou do prumo. O último agora, coisa recente, perdeu-se na bagunça do seu coração, plagiando o Chico." "Você gostava dele?" "Gostava e, por gostar, estou tentando dar a ele o que ele queria: o esquecimento." "Não entendi." "Nem eu, são mecanismos que a mente cria, sei lá. Ontem, um amigo nosso me ligou, pedindo o celular dele e, imagina, descobri que não sabia mais de cabeça! Acredita? Sei os números finais, mas não lembro de jeito nenhum o início." "Estranho..." "Não é? Fiquei pensando nisso... Ele é meu gatinho de Cheshire, aquele da Alice, que desaparecia, você conhece? Primeiro o corpo, depois o rosto, depois o sorriso." "Sorriso?" "Escárnio. Hahahahahaha. Você acredita que ele me enviou uma carta de amor e, meses depois, quando mostrei a ele, disse: 'que linda carta de amor que você me escreveu'? Ele não lembrava que era dele, esqueceu as próprias palaras... " "Vocês terminaram há muito tempo?" "Nunca começamos de verdade." "Você sofre?" "Por quem?" "Ele." "Ele ou eles?" "Tá. Eles." "Sofro por mim. Autopiedade. Uma merda." "Você acredita que eles a esqueceram?" "Claro que não. Sem modéstia nenhuma. Desses aí, para não aumentar a lista, o primeiro recentemente encontrou uma amiga e perguntou por mim, como eu estava, se estava casada, se tinha alguém, disse que queria me ver. Tô fora. O segundo reviveu a história comigo e disse que procurava a mim em todas as mulheres com quem se relacionou. O outro, traidor, altera-se sempre que fala comigo. Nunca é normal. Há sempre mágoa, raiva e culpa nas palavras escolhidas. E o último não consegue falar comigo. Isso é muito emblemático." "Eu estou péssima..." "Mas é para estar mesmo, não tem nem dez minutos que vocês terminaram. Desculpa perguntar, mas qual foi o motivo?" "Ele não sabe se gosta de mim." (volta a chorar muito) "Só o tempo vai dizer para ele isso, flor, espere com coragem. Depois, se ele continuar sem resposta, esqueça." "Sofri muito por ele..." "Esse problema não é dele, é seu, lembre-se disso." "Mas ele me sacaneou tanto..." "Já esse é um problema dele, não seu." "Ele mentiu." (choro altíssimo, que começou a me fazer sentir mal) "Não chora, vai... Você quer um amor, uma vingança ou um prêmio de consolação? Porque você não está me dizendo que o quer porque ele é bacana ou inteligente ou gostosão. Você o quer porque ele te fez sofrer, mentiu pra você... Desculpa, querida, mas isso ou é para se vingar ou é para ficar com ele como prêmio de consolação pela sua miséria." "Mas eu queria falar todas essas coisas que passei para ele." "Para ele se sentir culpado e voltar?" "Você agora está me deixando confusa..." "Se o cara a fez sofrer, para que voltar?" "Para dizer essas coisas". "E receber um afago e outro pé-na-bunda? Fala sério." "Tenho que engolir as palavras? Nem direito ao desabafo tenho mais?" "Vai adiantar? Desabafo traz amor de volta? Acho que é bom engolir, sim." "Mas ele tem que saber..." (choro alto). "Ele sabe. Olha, flor, se isso a consola de alguma forma, uma amiga minha tem uma frase genial para essas situações: 'Um dia a gente se encontra no inferno'. Se o cara foi mau, se a enganou, se tá te fazendo chorar assim... hahahaha... não tem jeito, vocês vão se encontrar no inferno. Espere." "Isso é muito pesado... Mas traz algum alento." "Um amigo meu me consolou uma vez com uma frase do Verissimo: calma, calma, 'daqui a 50 anos vamos estar todos mortos.". "Mas no inferno?" "Não há escapatória. Eu também vou estar lá. E aí te apresento aos meus ex."

3 comentários:

Claudia disse...

eu te digo: gosto de ti
amo-te
particula sister
tao querida
e tao amada...
ia me esquecendo:
e ninguem cala esse nosso amor, e eh por isso que eu canto assim, eh por ti fogo... fogooooo....fogoooooo
BICAMPEÃÃÃÃÃÃ!!!!!!

Curare disse...

Oka! Que lindo post, acho que depois de ter lido, nunca mais foi encarar meu chutes na bunda da mesma forma. Já tenho até uma resposta pra eles.
" um dia a gente se encontra no inferno."

Adorei! beijos flor!

Ana Silvia Mineiro disse...

Mas não é assim, lindona?
Ao dizer "a gente se encontra no inferno", estamos:
- chamando a pessoa de cruel, cafa, traste, e assim por diante
- dando esperança a nós
mesmo(a)s de poder um dia lavar todo aquele mundaréu de roupa imunda com a criatura
- mostrando para aquele(a)-que-vai-arder que nós também nunca fomos santo(a)s
Para mim, a frase é tudo.