quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O homem dodói (Joaquim Ferreira)

Ao homem dodói não dói o pâncreas nem qualquer osso do ilíaco. Não pergunte o mal que lhe aflige pois ele sequer sabe, não acreditaria, tão saudável, que acabou de ser catalogado entre os representantes desta nova espécie amorosa pela última namorada que não agüentou. Ela bateu a porta, jogou fora a chave e veio me relatar que havia mais um dodói solto machucando o coração das incautas. O dodói é o vilão passivo. Não bate na cara, não seqüela a pobre coitada, não maldiz aos palavrões o momento desgraçado em que tomou uma a mais, lixou-se para os cacófatos e carregou a vagabunda para a cama. É um sujeito bonzinho até, mas por omisso, eterna adolescência no jeito de tratar com as questões do amor, ele machuca mais que um kadu desses que andam espancando suas apaixonadas nos consultórios sentimentais dos jornais. O homem dodói, se você urge que a ficha caia rápido, é um deprimido que não sabe se quer, está em dúvida se cai dentro matando a pau, se joga tudo para o ar e muda a vida d e prumo para encarar, vento batendo de frente, uma nova relação. Foge da raia, mas não necessariamente diz. Não necessariamente trai, não necessariamente quer ir embora, não necessariamente faz questão de se fazer necessário. Se ele fosse um sinal gráfico de pontuação, seria uma linha com pontinhos de reticências. A doença, o tal dodói, lhe encaixa mais chocante porque pode ser até um sujeito bem resolvido profissionalmente. Tem o nome nos muros da cidade, na lista dos mais vendidos, uma postura agressiva no mercado de ações frias em que opera. Um sucesso no público, um fracasso no apartamento. Não cresceu. Como não dá qualquer sinal de que crescerá, tenha cuidado ao escrever sobre a figura. Homem dodói, com agá maiúsculo, mesmo no início da frase, não existe. Ele é minúsculo. Mixuruca. Antônio Maria, o mais eloqüente dos cantores das nossas desconexões amorosas, tinha uma cardiopatia conhecida como coração inchado. Morreu disso, graças a Deus viveu disso também e deixou textos magní ficos sobre os que decidem ir com tudo no cassino afetivo. “Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida?”, escreveu certa vez no jornal, ele mesmo destroçado pela exibição da dor que lhe corroia a alma. O dodói está fora de uma cena dessas. Não rasga o peito, não põe fogo às vestes nem rola seu despudor franco pela ribanceira. Tem medo, entre outros, de morrer enfartado, abandonado por alguma mulher, três e quinze, na madrugada de uma calçada de Copacabana. Não é o homem acabado pela dor filha-da-mãe da angústia profunda de uma saudade. Não arrasta qualquer melancolia que o faça arrancar com cera quente os pêlos grudados nas bordas do coração. Nada disso. Ele é dodói apenas. O eterno garoto que esfrega mertiolate nas perebas de sua incapacidade de se relacionar, que joga pó de sulfa no furúnculo de sua falta de vontade em finalmente crescer e dizer estou dentro, vamos nessa. Juntos. O dodói trata com mercurocromo a depressão. Acha que basta. Depois assopra e se diz, baixinho , “passou, passou”. Contra os males da covardia, balas de permanganato. Já tem mais de 30 anos, barba na cara, grana no bolso. Ao contrário dos adolescentes acima dos 25 que não desgrudam da casa dos pais, o dodói saiu de casa mas não deixa que saia dele a casinha-lego onde trancou os sentimentos. Pode até escrever profissionalmente para jornais e publicidade, mas não consegue redigir uma linha da carta de compromissos que o consolidará namorado, marido, amante, ou o mais que seja de aposta na vida dela. Aplica todos os verbos no tempo do talvez, na conjugação do quem sabe. Por mais carioca que esteja, não teme a bala perdida, nem ser atropelado por uma bicicleta na calçada. O dodói escorregadio foge é do pé na bunda, esse aprendizado fundamental na vida de qualquer macho, o momento decisivo em que os homens se separam dos meninos — ou não. Ele não sacode, não sai de cima, não tem ciúme, não tem vontade de jogar um copo de cerveja quente na cara da traíra fria, não disputa o amor imp ossível, não sente falta de ar na presença de ninguém, e se você pergunta por uma decisão, ele responde que, bem, desculpa, está confuso. O dodói pede desculpas à mulher o tempo todo. Não foi por mal, não foi por bem, e jura que a quer feliz, só não pode, desculpa, ajudar. É o homem estragado pela insustentável leveza de ser dos romances modernos. Dodói não lê Tolstói, por profundo demais. Só quer das rimas as que não estejam em “El dia que me quieras”. Nada de versos sobre paixões arrebatadas em que o amor viril de um homem por uma mulher possa soar como aventura e trazer conseqüências fora de controle. Quer distância das cicatrizes, das navalhadas, das cartas anônimas, das loucas passionais, do telefone tocando mudo na madrugada, do coração aos pulos, do formicida com guaraná ou de qualquer um desses boleros fora do hype da voga cool Os riscos do amor estão por fora da nova ordem mundial — e o dodói pede desculpas por ser tão frágil. Promete deixar a sua vítima em paz, mas de vez em quando aparece e ronda a infeliz. Por nada. Só quer ver como anda o dodói que provoca na alma alheia.

Um comentário:

Claudia disse...

ixe, esse eu conheço...