sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Cachaça de macumba

Uns dizem que sofrem porque atiraram pedra na cruz. Tenho certeza de que meus tormentos começaram numa esquina de Ipanema, quando subtraí a garrafa de cachaça de um despacho a caminho de uma festa, pencas de anos atrás.
Seguia com meu namorado e dois amigos e não me lembro de quem foi a idéia de desfalcar o ebó da caninha que jazia tentadoramente ali. A ação com certeza foi minha. Incentivada pela embriaguez e pela aventura, queria beber daquela garrafa mágica, que me ofuscava a consciência com seu néon. Mais tarde, percebi na carne as conseqüências de dar golpes em santos e entidades. Sim, sou supersticiosa.
Chegamos trôpegos, eu com a garrafa na mão, à casa na Barão da Torre que seria demolida para a construção de um edifício. A festa, uma das muitas de despedida do local, estava estranha, se desenrolava em câmera lenta. Nós quatro entramos em ritmo de “uhúúú, vamos detonar”, mas os convidados pareciam alheios à nossa presença esfuziante. Olhei para a beberagem enfeitiçada que segurava com um egoísmo desconhecido para mim: “Maneiro, essa cachaça dá o poder da invisibilidade. Ou será que não estamos aqui? Ou será que não estamos em lugar nenhum?”. Pronto. Começava a rolar a paranóia e a vingança do além.
Convoquei uma assembléia rápida com os outros três. Vambora daqui, sentenciei. Mas pra onde?, vacilaram os moços. Linha Branca – pra quem não sabe, era como chamávamos a Pinheiro Machado quando o rumo eram as ladeiras de Santa Teresa via Catumbi.No Golzinho preto do meu namorado, com a garrafa na mão sempre e a cabeça pra fora da janela em busca de ar fresco – a essa altura o estrago do álcool já era sentido em ondas de enjôo –, vi o Rio como o paraíso para desvalidos amantes do goró. Em praias, encruzilhadas ou nas mãos de criaturas que não deram conta de buscar refúgio para curar a manguaça, e abandonaram os corpos na rua, sempre há uma garrafa cheia, ou quase cheia, ou suficientemente cheia para alguém pegar. Divagava, quando a sirene da polícia incomodou meus pensamentos. Em vez, de parar, meu namorado acelerou, efeito da cachaça do ebó. Os homens vieram a toda, mostrando as armas. Nada a temer, éramos invisíveis.
A sirene ficou para trás, a garrafa continuava na mão. Em velocidade na Almirante Alexandrino, rodamos 180° nos trilhos derrapantes dos bondes. A cana voou pela janela, se espatifando no chão. Era o santo cobrando o seu quinhão, enfim.Nunca houve perdão para o pecado distraído de roubar o despacho. As divindades deram o veredicto naquela mesma noite ao meu “crime’: serás alvo da sanha de bêbados e loucos até o fim dos seus dias. Assim foi e assim é.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Heduardo Kiesse disse...

e por vezes a vida se faz assim - dessa embriagues lúcida que é - o presente!

abraços fraternos


bom fim-de-semana!